Clube de Xadrez Epistolar Brasileiro
Leva o Xadrez, traz o Amigo


<<< SACRIFÍCIO DE CAVALO >>>

Charles Kiefer

Publicado no "Estado de São Paulo", suplemento de Cultura de 08.06.91

Colaboração de Fábio F. Torre

         Tinha, enfim, conseguido. Depois de muitos anos de treinamento rigoroso, privações, milhares de partidas de Grandes-Mestres estudadas e decoradas, intermináveis exercícios táticos e estratégicos, estava a um movimento de desencadear a possível variante que levaria, através do sacrifício de seu último cavalo, à vitória e ao título.

         Uma vida inteira dedicada a este instante: um casamento fracassado - a mulher não suportava a sua obcessão, não podia compreender tamanha paixão por um jogo que se esgotava em si mesmo, que a nada levava, que nada produzia - e uma carreira profissional em ascenção barrada por peões passados, torres em sétima e bispos em fianchetto.

         Avaliou e reavaliou a situação: tinha vantagens teóricas evidentes, cadeia de peões contra peões isolados, peças ligeiras melhor desenvolvidas, dama com maior mobilidade, além do violentíssimo impacto psicológico que seu próximo lance desencadearia na alma do oponente. Sorriu, antegozando o prazer de esmagá-lo. Já podia comemorar o título; alguns lances a mais e o inimigo estenderia a mão, rendido, humilhado.

         Levantou o cavalo, a mão úmida tremeu. Sacrificar um cavalo, pensou. Um cavalo... Manteve a peça no ar uma eternidade, indeciso ainda. O sacrifício de uma peça gera sobre o tabuleiro uma verdadeira tempestade, quebra toda a harmonia, instaura o caos! E ele amava a ordem, a lógica precisa e retilínea, o jogo posicional. Era imprescindível reavaliar a situação: e se o outro, hábil caçador, farejasse o perigo e recusasse a oferta? Se sob aquela fraqueza estrutural tão evidente se esgueirasse um terrível e pantanoso golpe tático, um daqueles lances crípticos, demoníacos, tão freqüentes no mais amaldiçoado dos jogos? A mão suspensa, ouvia o tiquetaquear do relógio mas não desviou os olhos; a menor desconcentração podia ser fatal. Teve a nítida impressão de ouvir risos, velados ainda, é verdade, mas que cresciam e se transformavam em chacota.

         Uma vida inteira! Anos a fio, dia após dia, jogando, jogando, correndo atrás da fugaz alegria, sofrendo o brutal esmagamento do ego, empurrando a Pedra montanha acima. Precisava reconhecer: era um jogador medíocre, dos que ao final de uma vida de disciplina espartana e incessantes estudos, perdem fragorosamente para crianças prodígio, esses seres tocados pelo Grande Arquiteto. Lembrou de Mequinho, Bob Fischer e Judith Polgar. Segurou o cavalo no ar e sentiu uma dor funda, a súbita compreensão de sua insignificância. Nem era preciso procurar muito longe; ali, na própria olimpíada, havia dezenas de jogadores melhores do que ele. Era um miserável, dos que no cinema lotado sempre encontram um lugar vago exatamente atrás de um grandalhão que lhes impede qualquer visão da tela.

         Mas aquela era a sua chance, o momento esperado há tantos anos! Sacrificaria o cavalo, instauraria a confusão generalizada nas tropas inimigas e arremataria de forma brilhante. Além do título de campeão, receberia o prêmio de melhor partida. Era só lançar o cavalo sobre o peão protegido.

         Sacrificar o cavalo..., pensou. Um cavalo... Ia retomar a análise, mas o adversário já sorria e apontava-lhe a seta caída.